O GOLPE MILITAR DE 1964 - REPERCUSSÕES EM MUNDO NOVO
O
golpe militar de 1964 ecoou como uma bomba na então pacata cidade de Mundo
Novo. É que os fazendeiros da pequena cidade pecuária viviam assombrados com as
propagadas reformas de base em marcha nos planos do governo João Goulart e com
ampla aceitação popular, principalmente nos estados do nordeste brasileiro.
Em
Mundo Novo a preocupação maior era que quase toda a juventude intelectualizada,
bem como os cidadãos esclarecidos de um modo geral, aplaudiam a nova ordem. Os
funcionários do Banco do Brasil, cidadãos de alto prestígio local na época, em
quase toda a sua totalidade estavam solidários com João Goulart, Leonel
Brizola, Miguel Arraes e outros líderes nacionais. A partir da “revolução” esse
prestígio acabou-se e os funcionários do BB passaram a ser vistos como
“comunistas”, o que não era absolutamente verdade! Estávamos, como estamos
ainda hoje, ao lado dos excluídos, na tentativa de por freios ao nosso
capitalismo desalmado onde poucos estão com milhões e milhões estão à míngua.
Aí a coisa aqui mudou muito. Surgiu então uma figura até então desconhecida: o
dedo-duro. As pessoas esclarecidas, de um modo geral, passaram a viver um
pesadelo. As notícias que chegavam eram aterradoras. Centenas de presos
políticos estariam sendo torturados e os comunistas postos em navios e levados
para alto mar onde seriam descartados. Quem tinha livros “de esquerda” ou
qualquer livro que tivesse a cor vermelha, os queimou. Ainda me lembro de
alguns fatos, uns hilariantes outros dramáticos:
- todos que eram considerados “de esquerda”
seriam ouvidos pelos militares. Um humilde cidadão, mas que tinha o prazer de
só andar no meio dos “grã-finos” do BB, foi o primeiro a depor. Subiu as
escadarias da antiga Prefeitura municipal apavorado. Postou-se diante da mesa inquiridora: “Senhor
Fulano, estamos informados que o Senhor é um militante comunista em Mundo Novo.
O que o Senhor tem a alegar em sua defesa?” O humilde e querido cidadão
mundo-novense respondeu desesperado: “Eu, Seu General, eu sou democrata pra cacete!”
-Naquela época, um até então modesto
fazendeiro, mas político por índole, logo aderiu ao movimento revolucionário e
passou a desfilar em carro aberto do exército ao lado dos militares. Ele soube que ia haver um desfile do tradicional bumba-meu-boi, mas que
era organizado por militantes do prefeito, seu adversário político. Tomou o
jipe do exército e, acompanhado dos militares, foi impedir o tal desfile, que
de fato não aconteceu, nem naquele dia nem nunca mais... Passou a ser uma
tradição a menos em nossa terra.
- Havia também em Mundo Novo um
advogado, pai de família, beberrão, tísico, que tinha a fama de ser
esquerdista. Foi denunciado e levado para depor. Após o seu depoimento foi
conduzido para a sua residência por militares fortemente armados. A cena foi
chocante: um policial ia à sua frente e três outros o acompanhavam com as
baionetas coladas em suas costas. Ventava muito e o conduzido, magérrimo,
encurvado, mal conseguia vencer a pressão do vento. Em sua casa, segundo contaram,
a revista foi rigorosa; até os estofados da sala foram rasgados em busca de
material subversivo. Nada foi encontrado.
- Certa tarde, estávamos nós,
funcionários do Banco Brasil, sentados no jardim público, conversando sobre a
preocupante situação. Entre nós estava o pai de dois competentes funcionários
do BB. O pai deles ameaçou: “por mim todos esses esquerdistas seriam
perseguidos”. Um de seus filhos, ali pressente, ponderou: “Se for prender todos
os esquerdistas vai faltar lugar nas cadeias.” O velho respondeu: “o negócio
não é prender, é botar para fora do Banco!” O constrangimento foi geral.
- Em nossa cidade sempre houve dois
clubes sociais eminentemente político-partidários. Ninguém se misturava. A
situação era muito desagradável. Resolvemos então fundar um terceiro clube, O
Atalaia, totalmente apolítico. Somente seria frequentado por seus sócios e
convidados. Um dia o clube organizou uma festa com a participação de uma
cantora de fama nacional. O clube estava repleto. A Diretoria foi informada que
os operários que estavam construindo a nova sede do Banco do Brasil, barrados
na portaria, estavam ameaçando invadir o clube. Fomos até à portaria para dar cobertura ao porteiro, eu, como Presidente e o meu Vice. De repente um cidadão
trajando paletó escuro e calças brancas, empurrou a roleta para entrar. O
porteiro resistiu. Dei boa noite e perguntei de quem se tratava, pois o clube
era privado para os sócios ou seus convidados. Perguntei mais se ele era
convidado de algum sócio. Ele franziu a testa e retrucou: “Diga ao Presidente
que fui convidado para a festa dele, mas que não faço questão alguma de
participar”. Deu meia volta para sair. Respondi temerariamente: o Presidente
sou eu, estou informado, passe bem.
A situação acalmou-se, mas logo fomos
informados que o visitante era um tenente do Exército e que dissera que iria a
Feira de Santana “cozinhar a nossa batata”.
Realmente, alguns dias depois ele
chegou em uma rural do Exército, acompanhado de três soldados e nos levou para
depor no hotel onde estava hospedado. Acusou-nos de haver afrontado o Exército
Nacional e que por isso iríamos depor em Feira de Santana. Disse mais que não
iríamos dormir na cela da delegacia local em consideração ao “irmão Demóstenes”
(gerente do Banco).
No dia seguinte, depois de demorada
permanência na feira local, onde o tenente buzinava sem parar a sua rural, já
com a praça lotada de curiosos, seguimos finalmente para Feira de Santana. Ao
passarmos por Baixa Grande fomos interceptados por um famoso político local que
nos perguntou: “Para onde vocês estão indo, meninos?”. Explicamos. Ele
vociferou diante do Tenente: “Mundo Novo é uma terra de filhos da puta, se
fosse aqui em Baixa Grande vocês não sairiam”. Mas, não adiantou, seguimos
viagem e em Feira de Santana fui depor perante um Capitão do Exército que me
disse ter denúncias de que eu era comunista militante. Neguei o fato. Aleguei,
inclusive, que tinha provas de minha posição anticomunista. Perguntou-me por que eu fora levado para
depor. Respondi que presumia que fosse porque, sem saber, eu havia barrado um tenente na
portaria do clube do qual eu era presidente. Ele mandou-me retirar e chamou o
gerente do Banco para saber se a minha versão era verdadeira. O gerente
respondeu que nada sabia de minha militância comunista, mas que o fato ocorrido
no clube era verdadeiro. Voltamos para casa são e salvos.
- Após esses e outros lamentáveis
fatos, um Delegado de Polícia de Mundo Novo, que pouco ligava para as suas
funções policiais, e que, pelo contrário, passava os dias nos bares jogando
dama, gamão ou cartas, mas que, com o golpe de 64 assumiu ares de militar, passou
à condição de desafeto dos funcionários do BB. Certa manhã, enquanto esperava a
abertura do expediente externo do Banco, ele bradou lá fora em alta voz: “É, a
partir de agora não há mais comunistas no Banco do Brasil”. Houve risos de
solidariedade.
- Havia em Mundo Novo um pequeno
fazendeiro que viera do interior. Logo assumiu ares de revolucionário. Mais um
desafeto para nós. Numa noite chuvosa eu passava pela sua rua e ele estava na
porta de sua casa, sem camisa ( apesar do frio intenso), e com dois revólveres
na cintura. Fixou-me acintosamente com ar de desafio, com as mãos nos coldres.
Passei calado e humilde, pensando que o pior da ditadura não é o ditador, mas
os aderentes puxa-sacos.
- Outro cidadão, também pequeno
fazendeiro, mas ignorantão, da mesma forma resolveu fazer caça às bruxas.
Declarou que quem saísse à rua de camisa vermelha ele iria rasgá-la! Um dia,
íamos entrar no bar do Senhor Luiz para tomarmos umas cervejas, eu, mais três
colegas do BB e o causídico citado linhas acima. Pois bem, esse fazendeiro,
acompanhado de um contínuo do BB, tomou a porta e disse que naquele bar
“comunistas não bebiam”. E ordenou que nos retirássemos. Retiramo-nos: “Resistir,
quem há de?” (Olavo Bilac)
Tempos duros que amargamos por mais
de duas décadas! Agora já se passaram cinquenta anos e repetimos com Ruy: “Mas
não permitais Senhor, que a barbaria senhoreie de novo a nossa Pátria!”
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